GRANDES CONCEITOS PAULINOS
O conhecimento que o Apóstolo Paulo oferece é o conhecimento da fé. O logos de Paulo é digno de fé, Pistós hó logos, 1Tm 1, 15. Esta palavra digna de fé nasce do próprio Deus, que inaugura o conhecimento por tradição. “Na mente de Paulo o cristianismo ultrapassa de longe qualquer sistema filosófico, ético ou especulativo. Em outras palavras, não se trata de conhecimento humano, gnôsis, mas de conhecimento sobrenatural, epígnosis, termo típico de Paulo, que aparece quinze vezes em seus escritos. Seja do modo que for, o conhecimento natural não fica excluído, conforme a passagem de 1Cor 11, 14, onde se lê: “ensina a natureza…”.
A terminologia antropológica de Paulo é de origem hebraica. Entretanto, se compararmos alguns termos típicos da teologia paulina a esse respeito com a terminologia grega, podem-se descobrir alguns aspectos do helenismo. Carne, sárx, não é uma parte do homem, mas o corpo inteiro, o homem inteiro do ponto de vista de sua existência física, de suas fraquezas e mortalidade em contraste com Deus. O termo sôma, corpo, menos frequente, é quase o mesmo que o anterior. Quanto à psiché, alma, não se pretende indicar a alma no sentido grego, já que nunca é distinta do conceito de sôma, pois indica a vida do homem. Pnêuma, espírito, raramente indica a parte intelectual humana, pois a tradição da Septuaginta já o tinha consagrado no sentido de sopro, alento etc. Noûs,intelecto, espírito, não tem equivalente em hebraico e é certamente graças à sua formação helenística que Paulo o adota, e tem o sentido de juízo, inteligência, decisão. É alheio ao sobrenatural, enquanto que o termo anterior guarda essa característica. Uma passagem serve de modo especial para caracterizar a condição humana de um ponto de vista que hoje poderíamos chamar de psicológico. É a passagem de Rm 7, 14-25:
Sabemos que a Lei é espiritual; mas eu sou carnal, vendido como escravo ao pecado. Realmente não consigo entender o que faço; pois não pratico o que quero, mas faço o que detesto. Ora se faço o que não quero reconheço que a Lei é boa. Na realidade não sou mais eu que pratico a ação, mas o pecado que habita em mim. Eu sei que o bem não mora em mim, isto é, na minha carne. Pois o querer o bem está ao meu alcance, não, porém o praticá-lo. Com efeito, não faço o bem que quero, mas pratico o mal que não quero. Ora se faço o que não quero, já não sou eu que ajo, e sim o pecado que habita em mim.
Verifico, pois, esta lei: quando quero fazer o bem, é o mal que se me apresenta. Comprazo-me na lei de Deus segundo o homem interior; mas percebo outra lei em meus membros, que peleja contra a lei da minha razão e que me acorrenta à lei do pecado que existe em meus membros.
Infeliz de mim! Quem me libertará deste corpo de morte? Graças sejam dadas a Deus, por Jesus Cristo Senhor nosso. Assim, pois, sou eu mesmo que pela razão sirvo à lei de Deus e pela carne à lei do pecado.
O pecado, hamartía, recebe uma elaboração completa em Paulo. Em poucas palavras, o que não procede da fé como princípio de ação é pecado: Rm 14, 23. Estes são elementos de tanto da ética cristã como da mais original antropologia filosófica desenvolvida pelos Padres nos primeiros séculos do Cristianismo e, mais tarde, por via mais indireta, num caso e outro, na tradição escolástica.
No que se refere a Deus, a assim chamada prova cosmológica, que está unida à prova moral da existência de Deus em Romanos 2, aparece especialmente nos versículos 14-15: “Quando então os gentios, não tendo lei, fazem naturalmente o que é prescrito pela Lei, eles, não tendo lei, para si mesmos são Lei; eles mostram a obra da lei gravada em seus corações, dando disto testemunho sua consciência e seus pensamentos”.
O termo grego, eleuthería, liberdade, tem, na tradição grega, sentido distinto do que assume no pensamento paulino. Enquanto que, na tradição grega, o conceito se relaciona com a razão, no cristianismo nascente, a liberdade está ancorada na ação de Deus sobre o homem. Une-se a este, o termo sophía, sabedoria. Trata-se aqui da sabedoria prática, termo próximo ao conceito de santidade. Paulo confronta a sabedoria mundana com a sabedoria cristã. A propósito, eis a passagem de 1Cor 3, 18-19: “ninguém se iluda: se alguém dentre vós julga ser sábio aos olhos deste mundo, torne-se louco para ser sábio, pois a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus”. E qual é a sabedoria de Deus? Esta é a parte central e inspiradora de toda e qualquer filosofia cristã que se desenvolveu no Ocidente. Trata-se do esquema que se segue, presente em Empédocles, parcialmente em Platão e Aristóteles, e retomado pelos epicuristas e estoicos, para explicar a origem do prazer: a kénosis, esvaziamento, privação, de um dos elementos vitais do corpo conduz a um desequilíbrio e o sofrido sentido de falta, endéia, o que gera a epithymía, desejo, e o impulso para o preenchimento, para a plenitude a anaplérosis. Ao se atingir este estado, chega-se ao prazer, pois se alcança o equilíbrio do corpo.
É certo que não se pode fazer a passagem imediata desse esquema helênico para o famoso hino de Filipenses: “Ele, estando na forma de Deus, não usou de seu direito de ser tratado como um deus, mas se despojou, tomando a condição de escravo… Por isso Deus soberanamente o elevou…” O termo kénosis é, como se viu, de grande tradição filosófica. No esquema seguido por São Paulo, predomina a estrutura do profeta Isaías, do servo que é exaltado, glorificado por Deus. Por outro lado, a riqueza semântica da expressão, a profundidade do que ela significa dentro da mensagem cristã, compagina-se com tudo o que Paulo prega, especialmente em relação à sabedoria-loucura dos cristãos. Do ponto de vista metafísico, constitui-se a ontocristologia.
Se, por ontoteologia, se entende, na tradição filosófica mais recente, a metafísica que pensa os entes a partir do ser de Deus, ou ainda, que pensa o próprio Ser como Deus, esta não é a ontologia desenvolvida por filósofos cristãos. A filosofia cristã é ontocristologia, porque, embora a nome de Deus seja o Próprio Ser Subsistente, não se trata da aplicação de um conceito filosófico a Deus. Aliás, o nome de Deus é impronunciável e, a fortiori, dele não se pode ter conceito algum. Por isso mesmo, essas noções pertencem mais à filosofia, à cultura cristã do que à própria revelação bíblica. Para a tradição filosófica cristã, é sempre Jesus Cristo o referencial de suas meditações. É ele a sabedoria cristã. Não é, pois, a partir do conceito abstrato de Deus que se concebe a filosofia que, eventualmente, poderia conduzir ao cristianismo. O contrário é que é a verdade: o cristão encontrou na filosofia o lugar mais sublime entre as coisas humanas para inserir a figura de Jesus Cristo, através dos conceitos e métodos que lhe são apropriados.
A partir da doutrina de Paulo, as possibilidades e as características de uma nova metafísica devem ser desenvolvidas a partir do tema da aventura humana da perda. Nesta ordem de coisas, a abstração é entendida como ascese. O processo abstrativo é processo de separação, é o primeiro processo de humanização do homem. É o caminho da kénosis. O esvaziamento do humano é o esvaziamento do totalizante, da razão instrumental. É tendência para o intuitivo, que se dá na transcendência do outro, do desvelamento da transcendência. A kénosis é o conteúdo último da moral e do homem de valor, porque é atitude do amor.
Clemente de Alexandria, seguido por Agostinho e pela patrística em geral, segue a filosofia da kénosis. A tese principal de Clemente faz apelo à cultura clássica, ao defender que à filosofia antiga coube a tarefa pedagógica de encaminhar os gentios para Cristo, como a Lei servira para conduzir os judeus a ele:
Vem, pois, ó insensato, e não mais com o tirso na mão, nem coroado de hera! Larga tua mitra, deixa tua pele de cabra e retoma a razão! Eu te mostrarei o Logos e os mistérios do Logos, valendo-me de tuas próprias imagens[5].
Enfim, ao tratar do conhecimento humano, do homem e de sua liberdade, de Deus e sua natureza, Paulo introduziu conceitos fundamentais na cultura ocidental que, por via direta ou indireta, serão referências constantes da filosofia até o tempo presente.
Carlos Frederico Gurgel Calvet da Silveira
Nenhum comentário:
Postar um comentário